Olá comunidade leitora!
Chegamos no fim do ano e essa será a nossa penúltima postagem aqui na newsletter, até porque quero encerrar as nossas edições com um especial sobre as leituras do ano. Mas até lá vocês ficam com essa postagem sobre a leitura de “Dom Casmurro” de Machado de Assis, clássico da literatura brasileira e que faz parte do nosso projeto de leitura do "#Raízes:LendoBrasileiros. Nessa edição falo mais sobre como foi a leitura do livro e seus elementos presentes do que propriamente sobre o enredo do livro. É uma singela discussão sobre os elementos e a forma machadiana de construção de histórias esplêndidas de tão bem feitas.
Nessa edição você confere:
análise do livro “Dom Casmurro” de Machado de Assis e
os livros lidos no mês de novembro.
Boa leitura!
CAPÍTULO 03: MACHADO DE ASSIS - DOM CASMURRO| #RAÍZESLENDOBRASILEIROS
Talvez tenha lá para os seus doze anos ou mais que eu tenha lido “Dom Casmurro” de Machado de Assis. Foi no ensino médio, mas não foi por obrigação, foi por vontade mesmo, já que sempre fui curioso por aqueles autores que eram bem comentados, e além de que, minha professora de literatura sempre o citava em suas aulas. Logo depois, lá pelo terceiro ano, era que iríamos (minha turma) ter que apresentar uma peça escolar adaptando a obra para nosso contexto e eu, que não gostava da encenação, sempre ficava com a responsabilidade de ler a obra e retirar as falas necessárias para nossa encenação. A primeira experiência lendo o texto de Machado foi um alvoroço, foi como uma eletricidade que percorria meu corpo pela descoberta do diferente, do antigo que para mim também se apresentava como atual. Como assim o narrador da história falava diretamente comigo? Como assim o livro não era um monstro em tamanho, mas apenas um livro dividido em singelos e pequenos 148 capítulos? Era assim, nessas pequenas observações, que Machado ganhava um tamanho imenso dentro da minha admiração. E só hoje fico com pena em dizer que não tive a oportunidade de ler mais de suas obras por pura sonegação de tempo a esse grande autor.
Agora, tanto tempo depois e com uma releitura, é que percebo que o frenesi da grande polêmica sobre “traiu ou não traiu” ocupa um espaço tão pequeno na história. Na minha cabeça de adolescente o livro era composto de 30% de narrativa sobre a infância de Bentinho, 30% sobre seu crescimento e fase adulta e 40% sobre sua relação com Capitú, quando na verdade o livro é feito de 60% sobre a infância e a tentativa de fuga do convento de padres, 30% sobre sua fase adulta com Capitú e 10% sobre suas dúvidas quanto a sua relação matrimonial. A verdade é que as polêmicas ganham proporções quando não lidas e analisadas com mais detalhe. Mas enfim (e dizendo sinceramente sobre todo o seu contexto), “Dom Casmurro” se destaca (na minha opinião) muito mais pela sua estrutura e modo narrativo do que propriamente pelo seu enredo
Logo quando começamos a ler o livro somos apresentados ao seu narrador que aqui é o próprio Bento Santiago, o personagem principal, que nos convida, num tom um tanto saudosista, para que conheçamos a sua vida. É a partir de então que ocorro um pacto entre narrador e leitor, confirmando que teremos a versão da história contado não por alguém onisciente e presente na cabeça de todos os personagens do livro, não, mas sim um narrador que falará sobre sua vida, a sua relação com os demais personagens e as consequências dessas relações com sua opinião bem formada sobre o porquê de cada acontecimento e fato. Aí sim, é nesse momento que um leitor bem informado dá o primeiro passo para trás e trata consigo mesmo que essa história não será fidedigna da veracidade, mas sim memórias saudosistas sobre o passado, uma narração que poderá conter omissões.
Eu pergunto a vocês: Vocês lembram com exatidão o que aconteceu no dia 31 de outubro de 2011? Pois é, não muita coisa. Um dos fatores relacionados a memória é que ela se torna quase um borrão quando se tenta acessá-la, uma vez que fatos importantes se congelam como retratos, mas os sublimes ficam como fantasmas a deslizarem sobre os pormenores do que foi a vida. É difícil tratar as memórias de Bentinho como fidedignas, uma vez que são como fantasmas que praticaram a valsa num palco esquecido e mal iluminado. Em pequenos momentos da narrativa acontecem deslizes que contradizem fatos ou falas ditas no inicio do romance. O que sabemos é que estamos diante de uma manuscrito (como se o próprio narrador brincasse com o narrador Machado de Assis) escrito num tempo presente falando sobre a vida de um passado que já foi. E é a leitura desse passado e a análise dessa narração que faz com que o leitor brinque com a história que está lendo. Digo isso porque eu, agora com 30 anos e uma bagagem de leitura diferente do primeiro contato com o livro, o li como uma grande investigação de análise de discurso para entender as verdades e as mentiras que ele pode trazer. E a verdade tão dolorida que cabe ao leitor é saber que o livro ainda continua sem respostas e que uma única (ou poucas) leituras ainda são insuficientes para satisfazer esse leitor curioso.
Boa parte do livro se trata sobre a insatisfação de Bentinho em ter que cumprir a promessa da mãe e ter que ir para um colégio se formar como padre. É a motivação do amor pela Capitú (sua vizinha e paixão de infância) que o faz seguir com seus planos de fuga para uma vida “normal”. Mas o que seria esse “normal”? Cumprir sua promessa de paixão e acabar vivendo eternamente o amor que lhe foi destinado, planejado, desenhado e prometido? Como poderia esse amor resistir a tanto tempo e a tantas provações? Como é que dois jovens, que mal conhecem o mundo, podem sentir satisfação num mundo moldado sem experiências?
Na minha opinião Capitú não traiu Bentinho, mas deveria ter traído. O que acompanhamos é uma paixão tão platônica e obsessiva que se forma nesse narrador que chega ao ponto das verdades se tornarem dúvidas, da vida bela se tornar um sufrágio e da felicidade ser um peso quase insuportável. São essas marcas que ligam a história a nossa atualidade, por histórias marcadas pelo machismo, pelo patriarcalismo e que fazem o enredo ser analisado através da perspectiva feminina de Capitu, o que é uma boa forma de interpretar e analisar um clássico. Machado na sua construção da linguagem sempre fala em olhos: os olhos de ressaca de Capitú, os olhos de Ezequiel que se assemelham ao de seu amigo, os olhos de sua mãe. Figuras de linguagem que só mostram a visão de Bentinho através do olhar dos outros, do prisma enviesado dos outros, como num labirinto de escolhas que não são suas, de fantasmas que o perseguem para escolhas que o levaram a solidão. O narrador do presente que nos fala é o verdadeiro Dom Casmurro que se construiu com as bases dos tijolos de seu passado. Um passado que foi sua escolha e sua derrota. E na sua opinião: Traiu ou não traiu?
E qual será o próximo título lido?
A nossa próxima leitura do projeto #Raízes:LendoBrasileiros será um mergulho em Clarice Lispector. Em “A paixão segundo G.H.” iremos conhecer uma das maiores autoras da literatura nacional, com uma linguagem que não se compara em sua unicidade. Saiba mais sobre o projeto clicando no link abaixo.
LIDOS DO MÊS: NOVEMBRO
Da cozinha da Dona Flor, indo parar numa cabeça oca em pleno Ceará até chegar numa narrativa linda e reflexiva sobre o que é ser humano. Essas foram as leituras realizadas durante o mês de novembro.
📚 “Dona Flor e seus dois maridos” de Jorge Amado: Na Bahia, Dona Flor vive uma vida peculiar casada com dois homens diferentes: Vadinho, um marido falecido, e o segundo esposo, o pacato farmacêutico Teodoro. A obra de Jorge Amado é uma comédia inteligente que explora as nuances do casamento e da vida.
📚 “A cabeça do santo” de Socorro Acioli: Nesta obra conhecemos Samuel, um jovem que parte de sua cidade e vai parar dentro de uma cabeça oca de Santo Antônio. Ele acredita que o santo fala com ele e decide iniciar uma jornada em busca de milagres para transformar a vida de sua comunidade. Uma narrativa mágica que explora a fé e a busca por significado.
📚 “Flores para Algernon” de Daniel Keyes: Este clássico da ficção científica segue a jornada de Charlie Gordon, um homem com deficiência intelectual que passa por uma cirurgia experimental para aumentar sua inteligência. O livro é uma exploração sensível sobre a mente, a empatia e os dilemas éticos da ciência.
Decreto oficialmente que encerrei as minhas leituras do ano de 2023. Na nossa próxima edição trarei uma especial com dados sobre como foi as leituras do ano, algumas estatísticas levantadas e os títulos em destaque que fizeram de 2023 um ano de aprendizagens e crescimento como leitor.
A newsletter da Bodega já vai na sua sétima edição e fico sempre grato em ter esse espaço para compartilhar com mais detalhes os pensamentos que surgem na minha cabeça sobre aquilo que leio, aprendo ou penso, porque creio que a leitura não deve ser só compartilhada em simples imagens congeladas.
Ainda não direi que essa é a última postagem do ano, pois como prometido ainda volto. Mas os convido a aguardarem a próxima edição e nessa sim, despedir-se do ano de 2023 com mais singeleza.
É isso! Um grande abraço e até a próxima!
Bodega Literária.
P.s.: Se você perdeu as edições anteriores, pode usar o atalho abaixo para sua leitura: