CAPÍTULO 04: CLARICE LISPECTOR - A PAIXÃO SEGUNDO G.H. | #RAÍZESLENDOBRASILEIROS
"A Paixão Segundo G.H.", obra-prima de Clarice Lispector, não é apenas um livro; é uma jornada de autoconhecimento, uma experiência literária que transcende as fronteiras do tempo e do espaço. Publicado em 1964, este romance desafia as convenções narrativas tradicionais ao mergulhar nas profundezas da mente de sua protagonista, G.H., e explorar questões fundamentais sobre a existência, o significado da vida e a natureza da consciência humana.
Em seu prefácio Clarice diz:
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente - atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar.
Quase como um desafio, Clarice meio que debocha do leitor, o questionando desde as primeiras páginas sobre sua capacidade de entendimento quanto ao seu texto, leitor esse que possa atravessar as linhas de sua narrativa e alcançar (ou tentar) o mínimo que seja de sua perspectiva criadora. No último vídeo gravado em vida para a TV Cultura, Clarice comenta o fato de diversos professores e pensadores questionarem o seu livro pelo fato de não o entenderem, alguns até a chamando de “hermética”, ou seja, uma prosa que dá voltas e voltas sem um sentido de fim. Do mesmo lado a autora relata quando uma jovem estudante de nível básico o transforma no seu livro preferido de cabeceira. Então para quem é feito a literatura de Clarice? Afinal de contas, é possível entendê-la?
De partida digo que os livros de Clarice Lispector são como um mergulho no desconhecido, uma aventura numa selva repleta de feras e surpresas e, quando nos deparamos com suas epifanias, somos agarrados e caímos na armadilha de sua unicidade de palavras que formam um tecido rico e poderoso. Por isso que é tão difícil para um leitor de Clarice contar sobre o que os seus livros se tratam ou mesmo contar sua própria experiência, já que é quase impossível relatar tal acontecimento.
Na superfície do romance “A paixão segundo G.H.”, a trama parece simples: uma mulher (rica, branca, artista plástica) está entediada por ter demitido sua empregada. Pelo tempo no ostracismo ela decide arrumar sua casa como num sinal de purificação, a começar pelo quarto dessa mesma empregada que a abandonou. Ao chegar ao quarto da mesma encontra desenhos na parede feitas com giz, uma leve camada de pó que cobre os móveis e no guarda-roupa… uma barata que a encara. Ponto. Até aqui tudo bem em sua normalidade, mas esperamos de Clarice uma epifania, e isso acontece quando a narradora começa uma jornada a partir de suas próprias reflexões, numa viagem interior complexa e emocionalmente carregada, na qual G.H. confronta seus próprios medos, angústias e desejos mais profundos.
A partir daqui se desenvolve um outro tempo na narrativa, paralelo ao nosso tempo comum, que vai desenhar toda a estrutura da obra no que chamei no inicio de “mergulho”. O que torna "A Paixão Segundo G.H." tão cativante é a maneira como Lispector utiliza o fluxo de pensamento para explorar a mente de sua protagonista. O tempo se estica e se contorce, permitindo que o leitor mergulhe nas profundezas da consciência de G.H. e testemunhe suas reflexões mais íntimas sobre a vida, o amor, a morte e a identidade.
A linguagem de Lispector é poética, enigmática e repleta de simbolismo. Cada palavra é cuidadosamente escolhida, cada frase carrega um peso emocional significativo. Ao longo da narrativa, o leitor é convidado a refletir sobre o significado oculto por trás das palavras, a mergulhar nas entrelinhas e a descobrir novos significados a cada leitura. Um dos aspectos mais marcantes de "A Paixão Segundo G.H." são os momentos de epifania, nos quais G.H. experimenta uma profunda transformação espiritual e emocional. Esses momentos são como raios de luz que rompem a escuridão da existência, revelando verdades ocultas e desafiando as concepções preconcebidas do leitor sobre si mesmo e o mundo ao seu redor.
Ao final da leitura de "A Paixão Segundo G.H.", somos deixados com mais perguntas do que respostas. O livro não oferece uma narrativa tradicional com um começo, meio e fim definidos; em vez disso, nos convida a refletir sobre os mistérios da vida e da consciência humana. É uma obra que ressoa além das páginas, deixando uma marca indelével na mente e no coração do leitor. Portanto, que cada leitura seja uma jornada única e pessoal, uma busca contínua pelo significado e pela beleza que habitam dentro de nós mesmos.
E qual será o próximo título lido para o projeto “Raízes: Lendo brasileiros”?
A nossa próxima leitura do projeto #Raízes:LendoBrasileiros será a descoberta de um novo olhar para o Brasil. Leremos Aluísio Azevedo com “O cortiço”, um livro que destaca as periferias do Brasil, a população mestiça e os costumes da nossa gente. Um clássico de nossa literatura. Saiba mais sobre o projeto clicando no link abaixo
//PARCERIAS 2024 // FÓSFORO
O recebido em abril da Fósforo Editora foi o livro do Jon Fosse chamado “A casa de barcos”. Esse foi meu primeiro contato com ele, daí que nem consigo comparar outras de suas obras para saber em que medida o autor cria a sua ficção. Logo de cara digo que foi uma experiência diferente, já que Fosse propõe uma leitura a partir de uma construção também diferente, marcada por um ritmo que saí da conveniência e que exige de nós leitores um esforço.
A construção narrativa de Fosse nessa obra é marcada por um fluxo de consciência constante, quase como num jorro advindo do personagem principal que conta a sua história. Nesse livro acompanhamos Bard, um jovem com pouco mais de trinta anos, desempregado, que toca numa banda para ganhar uns trocados e mora com sua mãe. Nesse momento, incessantemente, ele descreve como foi reencontrar com seu amigo de infância, Knut, que retornou para sua cidade, agora diferente, com filhas e esposa, para passar as férias e reencontrar a família. Bard, num rompante quase alucinante, narra as diferentes reações e momentos de como foi esse reencontro e os fatos que levaram ao desfecho da narrativa.
Marcada pela repetição constante de frases e pensamentos, Fosse constrói um personagem que oscila entre o devaneio (devido ao seu estado atual de depressão) e a vivência dos fatos que marcam aquela passagem de seu amigo, já que irá despertar lembranças de sua infância, como os momentos na escola e a formação de uma banda, assim como também a casa de barcos, um depósito de embarcações abandonado a beira da praia que serviu como refugio para ambos os amigos. A casa de barcos em todo o livro serve como uma grande metáfora para o resgate dessas lembranças, que podem contribuir ou não para o quebra-cabeça em entender a situação do narrador em sua atualidade.
Foi a tanto tempo, agora tudo é tão diferente, assim como a casa de barcos, que era tão grande, abrigava uma vida inteira, quase, e agora não é mais nada, assim é com a maioria das coisas, no final não resta nada, tudo apenas deixa de ser, tudo muda, e aquilo que um dia foi se transforma numa coisa totalmente diferente, diminui, torna-se nada, assim é a vida, não tem o que fazer, é assim e pronto. (p.97).
Marcada por vai e voltas no passado e presente, Fosse constrói uma teia que embaralha a mente do leitor em decifrar os momentos de sua vida. A narrativa é divida em três partes, todas marcadas para a explicação das ações que se sucedem, e todas elas servem como uma camada microscópica em que o narrador coloca ou retira elementos na tentativa dessa reconstrução, o que torna a leitura um caleidoscópio do mesmo momento. Fosse nesse mergulho na mente do seu personagem cria um repertório nublado mas muito sensível, onde acompanhamos as paisagens de uma cidade costeira da Noruega, com suas praias, fiordes e pescadores, dando um clima de solidão que chega a nos incomodar durante a leitura. Por fim o leitor aproxima-se cada vez mais do desfecho final do livro, mas com um sentimento de incompletude, onde temos mais perguntas que respostas, mas nada que desfoque o encanto da narrativa maravilhosa de Fosse, ou seja, um convite a uma outra experiência.
Um abraço!
Rodolfo Vilar
Bodega Literária.
P.s.: Se você perdeu as edições anteriores, pode usar o atalho abaixo para sua leitura: