UM DEFEITO DE COR
Há livros que simplesmente lemos e que se transformam numa pequena peça decimal de nossa identidade, como que um ponto a mais na significância da vida de formação como leitor. Não é o que acontece com a leitura de “Um defeito de cor" de Ana Maria Gonçalves, já que o leitor desavisado toma do livro como se tomasse da mão de uma grande companhia e sua leitura é mais que literatura, é uma transformação, pois não somos os mesmos quando encerramos essa aventura. Além de acompanhar, a leitura nos transforma enquanto humanos.
E fica propriamente difícil escrever uma resenha/texto sobre o livro da Ana Maria Gonçalves, uma vez que esse mergulho na leitura é tão intenso que falar sobre os fatos do enredo é algo pequeno comparado a experiência do todo que o livro propõe. Por isso, como de início, posso dizer que o enredo de “Um defeito de cor” é um grande legado que a autora deixa ao mundo, com um objetivo de referenciar a grande identidade afro-brasileira, assim como as centenas de mulheres pretas que foram representadas através da história e das conquistas da protagonista Kehinde.
É preciso saber que apesar de ser uma figura fictícia, Kehinde tem um pé, e dos grandes, na história real. É na figura do abolicionista Luís Gama - negro, grande advogado de sua época e que também usou de seus estudos para procurar brechas nos sistema e libertar centenas de escravizados - que Ana Maria G. cria a figura da personagem Kehinde, baseada na figura da mãe do próprio Luís, que considerava e acreditava em sua mãe como a mulher que o ajudou na criação do gênio e grande homem que se tornou. Apesar de não a ter conhecido, já que ambos foram separados enquanto ele era criança, Luís Gama diz conhecer a biografia da mãe, essa mulher quase mitológica que foi trazida como escravizada de Daomé, na África, até São Salvador, violentada, abusada em todos os seus processos de escravização, mas que foi uma das protagonistas da Revolta dos Malês (1835), tendo depois de anos conseguido voltar ao seu país de origem. É através dessa figura histórica que a autora cria essa personagem tão multidimensional, que com uma enorme pesquisa pela história, documentos, relatos e processos, é relatada em todos os momentos importantes do século XIX, como uma figura que é importante para retratar esse momento no Brasil. Aqueles que leem “Um defeito de cor” reconhecem as mulheres que passaram por tal processo e reconhecem em si parte de sua identidade racial e cultural, mostrando o quão importante o livro se mostra em nossa atualidade.
Publicado em 2006, o livro levou cinco anos para ser escrito, em decorrência do seu vasto processo de pesquisa para produção. Ana Maria G., formada em publicidade, diz que na época sentia a necessidade de largar tudo em prol de produzir algo grande e importante. Mal sabia ela que tal empreitada mudaria a sua vida para sempre.
Mais uma vez repito, não há como não sair transformado após a leitura do livro. Acompanhamos Kehinde em seu flagelo ao ser trazida num navio negreiro, transformar sua vida em São Salvador, transforma-se em mulher, conhecer a sua religião, partir para São Sebastião do Rio de Janeiro e São Luís do Maranhão, numa pluralidade de aventuras para descobrir de fato quem é: uma mulher que sofreu, mas que também teve sua dose de conquistas numa jornada necessária para transformar a nós como leitores.
Para a disciplina de Literatura e Cultura Afro-brasileira produzi um comentário para um fórum sobre o conceito do que seja essa “Literatura negra”:
O texto de DUARTE1 norteia a Literatura Afro-Brasileira ou Literatura Negra com base em cinco elementos que se complementam no conceito plural do que essa vertente representa. Mas o autor também questiona como esses elementos (a temática, a autoria, o ponto de vista, a linguagem e o público) se tornam ao mesmo tempo não engessados, mas sim como um rico tecido que vai costurando a produção literária no Brasil e como tal literatura se torna representativa na tentativa de sair desse etnocentrismo e dar voz a escrita como expressão de um povo que por séculos foi silenciada, os excluindo enquanto corpos e intelectos.
Como EVARISTO2 (2010) diz: “A literatura negra toma como parte do corpus a História do povo negro vivida e interpretada do ponto de vista negro, propondo uma leitura transgressora da História oficial e escrevendo a história dos dominados”, daí então discutir a importância desse viés que dá voz a histórias e pessoas que foram silenciadas, saindo da perspectiva eurocêntrica e branca, criando no sentido da literatura um sentido de coletivo, de representatividade, que faz os negros se reconhecerem e se sentirem retratados, além claro, de corrigir a história que tanto negou o espaço e ainda está em dívida com esse grupo.
A importância da Literatura Afro-brasileira amplia sim a visão do povo brasileiro, uma vez que são essas histórias, que fazem parte de sua identidade, que carregam memória, significado, lugar e até personagens, já que como diz EVARISTO (2010) “deixa de ser objeto para a literatura alheia e passa a criar a sua própria” literatura, fazendo o leitor de hoje se questionar quanto a sua posição e reconhecer o seu lugar de pertencimento, de fala, discutindo as relações sociais e as barreiras que surgem em nossa contemporaneidade.
Cultura, religião, África, história, Brasil, política, luta e identidade são a amalgama do que é “Um defeito de cor”, esse livro importantíssimo que já se consolida como um clássico de nossos tempos e que deveria ser obrigado que todo brasileiro lesse para entender o país em que vive e aquilo que é.
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//PARCERIAS 2024
No mês de março recebi da Editora L&PM o livro do Eduardo Galeano chamado “Vagamundo”. Nesse livro, uma coleção de breves relatos e contos organizados durante o período de 1973, mostram a genialidade de Galeano na contação de histórias com seu estilo único, destacando a região em que vive, a cultura a que aprecia e a linha que costura seus relatos, ou seja, a palavra como matéria prima.
Dividido por capítulos, o livro reúne contos que se separam por sua temática: A infância e as amizades; o patriotismo envolto na coragem em lutar por um país melhor não só para sua geração, mas também a futura; fábulas e contos quase místico e paisagens que retratam com detalhes a tão típica América Latina. Com sua literatura Galeano parece misturar memórias e relatos de sua própria vida, dando fidedignidade e mistério ao que já parece quase etéreo e subliminar. Não há como não se apegar aos relatos e perceber durante a leitura os capítulos e as páginas passarem voando.
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Um abraço!
Rodolfo Vilar
Bodega Literária.
P.s.: Se você perdeu as edições anteriores, pode usar o atalho abaixo para sua leitura:
DUARTE, E. de A. Literatura Afro-brasileira: Um conceito em construção. UFMG.
EVARISTO, Conceição. Literatura Negra: uma voz quilombola na literatura brasileira. In: PEREIRA, Edmilson de Almeida (Org). Um tigre na floresta de signos. Belo Horizonte, Mazza Edições; 2010.