Demorou mas a edição treze da newsletter da Bodega Literária chegou!
Nessa edição você confere um artigo exclusivo sobre o livro “Torto Arado” de Itamar Vieira Jr. (cuidado, contém spoilers!), além do recebido da Editora L&PM. Boa leitura!
TORTO ARADO
Por Patrícia Pereira e Rodolfo Vilar1
Sobre o enredo
Este texto consiste na análise do romance intitulado “Torto Arado2", publicado em 2018 e criação do renomado escritor baiano Itamar Vieira Junior, nascido na capital Salvador em 1979, graduado e Mestre em Geografia e Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Itamar estreou na literatura em 2012 e seis anos depois, em 2018, conquistou em Portugal com este romance o tão conceituado Prêmio Leya.
O romance “Torto Arado” explana a história das irmãs Bibiana e Belonísia, que por curiosidade e às escondidas da sua avó Donana, vasculham sua mala antiga e descobrem uma faca de cabo de marfim enrolada em um pano manchado. Ambas se encantam com o brilho daquele metal, algo extremamente encantador para os olhos de duas meninas curiosas. No ato de encanto e curiosidade, Bibiana coloca a faca na boca para tentar sentir que gosto tinha aquele metal e ao fazer isso acaba ferindo a sua língua. Belonísia retira a faca já ensanguentada da boca da irmã e repete a ação na tentativa de também sentir que gosto tinha o objeto, porém de forma mais grave acaba por mutilar a própria língua. A partir desse ocorrido, Bibiana passa a ser a voz da sua irmã que transmite por meio de gestos suas expressões.
A história das irmãs se passa na Fazenda Água Negra, interior baiano, região fictícia criada pelo autor mas que poderia representar qualquer interior do Brasil. Lá elas nasceram e viveram junto a sua mãe Salustiana Nicolau, uma parteira, dona do lar e trabalhadora daquelas terras, e do seu pai, Zeca Chapéu Grande, este curador de Jarê que remediava com ervas e rezas os enfermos da carne e da mente. Viveram juntas aos seus irmãos, Domingas e Zezé, e da sua avó Donana, uma senhora ligada aos encantados e espíritos, dona da faca que mutilou a língua da sua neta e que por isso prefere dar um fim ao objeto na beira do rio Utinga, onde acaba falecendo no mesmo. Nesse enredo também vivem com o primo Severo, que num momento inicial da narrativa chega na fazenda ainda adolescente e se envolve com Bibiana, onde a mesma engravida e por ele carregar o sonho de viver para além daquela fazenda, acaba a convencendo e fugindo em uma das madrugadas. É após a partida de Bibiana que Belonísia passa a sentir falta da irmã que por tanto tempo foi a sua voz, marcando um segundo recomeço em sua vida, tendo que de forma independente reaprender a se comunicar.
Certo tempo depois, Belonísia vai morar junto com Tobias, um vaqueiro que chega nas terras de Água Negra e pede sua mão em casamento. Nesse convívio a relação entre ambos é marcada pela violência psicológica e pelas marcas do patriarcalismo, uma vez que Tobias bebe corriqueiramente e a trata de qualquer forma. Belonísia fica viúva de Tobias e não mais se casa com outro homem, também não tem filhos, mas trabalha corajosamente na casa que viveu junto ao marido.
Anos depois da fuga de Bibiana e Severo, eles retomam a Água Negra com a vontade de modificar a realidade de todos daquela terra, que sempre foram proibidos de construir casas resistentes ou de terem qualquer direito sobre a terra e sobre o que produziam, assim como seus antepassados que derramaram seu suor na labuta de domingo a domingo. O tempo decorre e Zeca Chapéu Grande falece e ocorre o ato simbólico de sua casa ser desfeita sob o poder dos encantados que em seu corpo fizeram morada.
Após a morte de Zeca Chapéu Grande, Severo é assassinado próximo a casa da sogra por lutar pela posse daquelas terras que carregavam toda a luta e a história de seu povo, que mesmo com a abolição da escravidão ainda viviam como escravos, sendo retirados os seus direitos por aqueles que se declaravam donos da fazenda de Água Negra. Sob a morte de Severo, a encantada Santa Rita Pescadeira relembra os momentos em que esteve nos festejos de Jarê, recordando com tristeza a forma como foi esquecida e rememorando os momentos em que via o sofrimento daqueles como Vó Donana, Zeca Chapéu Grande e Severo que passaram sobre as terras que viveram.
Sobre sua forma
O famoso romance se divide em três partes, dispostas em “Fio de corte”, “Torto Arado” e “Rio de sangue” respectivamente. Todas as partes da narrativa têm narrador-personagem feminina e em primeira pessoa, o que marca o olhar feminino em toda a narrativa e traz um atravessamento do papel da mulher na vida de diversos personagens. “Fio de corte” está disposto em 15 capítulos e a narradora é Bibiana. “Torto Arado” se faz em 24 capítulos e tem Belonísa como narradora. Já “Rio de sangue", se faz em 14 capítulos e sua narradora é a entidade Santa Rita Pescadeira, o que diferencia o romance de outras narrativas. Todo o contexto apresentado sob a fala de cada uma destas narradoras leva o leitor a mergulhar sobre a força e resistência da mulher em meio a situações desafiadoras, além de envolver aspectos religiosos e refletir historicamente o preconceito e racismo que se operam grandemente acerca dos negros.
As três partes de “Torto Arado” trazem temáticas bastante pertinentes no cenário atual da literatura que vai na onda desse crescente ritmo de obras que tratam sobre assuntos importantes para o debate social sobre raça, gênero e direitos humanos. Ao tratar sobre temas como arrendamento, dificuldades da vida cotidiana dos interiores do Brasil, latifúndio e violência, assim como a celebração à religiosidade, crenças, ancestralidade e vida em comunidade, Itamar Vieira Jr. consegue representar uma parcela da população que vive na pele essas agruras da luta diária do campo e das condições de vida.
Além da sua formação, como funcionário público do Instituto Nacional de Colonização e Reformas Agrárias (INCRA), fica evidente que Itamar Vieira Jr. tem propriedade para falar em sua narrativa sobre as famílias de origem quilombola, já que vive de perto a realidade do que acontece nos interiores do Brasil e na luta diária pelos direitos básicos ao reconhecimento de cidadania. As irmãs Belonísia e Bibiana (assim como sua família) são essa representatividade na literatura que dá voz nos tempos atuais as discussões sobre a temática antirracista, a distribuição igualitária de terra e ao reconhecimento da população negra como pertencente ao seu lugar de origem.
Os títulos que compõem a divisão do romance não são nomeados em vão, uma vez que são os núcleos das temáticas que irão nortear a narrativa de cada personagem. Na primeira parte do livro (Fio de corte), acompanhamos o crescimento das irmãs. Logo nas primeiras cenas é relatado o grande desastre da perca da língua de uma dessas irmãs em consequência da lâmina de uma faca pertencente a personagem Vô Donana. A partir de então, o autor cria uma simbologia para a representação da falta de voz, que pode ser entendida também como metáfora à população que não é ouvida em seu grito de apelo, ao silenciamento da população negra que historicamente é silenciada. Nessa mesma parte do livro é possível entender alguns aspectos que denotam a especificidade da vida em comunidade da população quilombola representada por Itamar: a celebração da ancestralidade cultuada através da religião de vertente Afro-quilombola (Bantu-Yoruba) chamada de Jarê, o cultivo de culturas e plantios e a reminiscência de trabalhos que ainda denotam a escravização de outros tempos. Nesse aspecto racial, o autor destaca em diversos momentos o sentimento de estranheza que a própria comunidade quilombola sente quando outras pessoas, que não negras, entram em cena, como por exemplo, quando é necessário sair da comunidade para procurar atendimento médico e a narradora constata que foi o primeiro lugar em que viu “mais gente branca que preta” (p.18) ou em outro momento em que certo personagem constata que “o povo daqui não diziam que eram pretos. Pretos não eram bem-vistos, tinham que deixar a terra. Então dizia que era índia” (p. 223).
É a partir da segunda parte do livro (Torto arado) que surgem mais debates sobre a precariedade da forma como as famílias vivem. A forma de arrendamento e de “empréstimo” da terra e o não pertencimento aos seus lugares de origem. Pela historicidade da região, o autor narra sobre os aspectos do garimpo e da formação do lugar, trazendo traços e características da cultura escravagista de outros tempos que marcam a forma como a população negra, submetida a força pelos colonos, não poderia ter seu pedaço de chão. Como quando a narradora diz:
“Diziam que talvez fosse por conta do passado minerador do povo que chegou à região, ensandecido pela sorte de encontrar um diamante, de percorrer seu brilho na noite, deixando um monte para adentrar noutro, deixando a terra para entrar no rio” (p.39).
A partir de então as famílias vivem numa cultura de mão-de-obra arrendada, em péssimas condições, com exploração quase escravizada, além de relatos de trabalho infantil e o esquecimento do futuro, senão aquele em serviço ao seu patrão, numa falsa sensação de vida liberta, “a mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade. Mas que liberdade?” (p. 220).
Para debater a realidade sobre o assunto, Itamar narra:
“Se esvaía toda a coragem de que tentei me investir para viver naquela terra hostil de sol perene e chuva eventual, de maus-tratos, onde gente morria sem assistência, onde vivíamos como gado, trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo o descanso, e as únicas coisas a que tínhamos direito era morar lá até quando os senhores quisessem e a cova que nos esperava fosse cavada na viração, caso não deixássemos Água Negra” (p. 128).
Sem essa sensação de pertencimento à terra onde vivem, a população vive essa perspectiva de alheamento, de viverem de favor e sem sequer poderem construir casas fixas que denotem suas moradias, já que só “podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra” (p. 41).
É quando na terceira parte do livro (Rio de sangue), Bibiana volta à sua terra após casar e ver um mundo diferente (mas ainda igual ao seu), que surge dentro da sua alma uma sede por mudança à sua comunidade, a procura de meios que possam melhorar as condições sociais de sua família e de seus conhecidos, no reconhecimento dos direitos daqueles que verdadeiramente são donos da terra. É seu esposo Severo, através de reuniões e debates sindicais, que movimenta na população as discussões sobre latifúndio e divisão de terras. Em certo momento a narradora relata:
“Meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali tirávamos nosso sustento” (p. 185).
Mas como mudar a cabeça daqueles que acham que a terra pertence a outros donos? Onde acham que “a terra é deles. A gente que não dê que nos mandem embora. Cospem e mandam a gente sumir antes de secar o cuspo” (p. 45). Para que os “os homens investidos de poderes, muitas vezes acompanhados de outros homens em bando armados, surgissem da noite para o dia com um documento de que ninguém sabia a origem” (p.22) e os enxotasse dali. É nesse momento decisivo que o autor retrata a perseguição armada aos movimentos sindicais e a luta verdadeira no derramamento de sangue por aquilo que lhes pertence.
Não à toa que essa parte do livro, diferente das partes anteriores narradas pelas irmãs, é narrada por uma entidade encantada do jarê, Santa Rita Pescadeira, que, por ter vivido e presenciado muitos fatos, tem essa propriedade de narração para falar sobre o povo de Água Negra, narrando não somente as agruras do trabalho precário, mas também outros aspectos como a violência doméstica sofrida pelas mulheres negras que vivem casamentos forçados e marcados pela brutalidade do patriarcalismo, assim como o papel dessas mesmas mulheres em prol de suas famílias:
“Todas nós, mulheres do campo, éramos um tanto maltratadas pelo sol e pela seca. Pelo trabalho árduo, pelas necessidades que passávamos, pelas crianças que paríamos muito cedo, umas atrás das outras, que murchavam nossos peitos e alargavam nossas ancas” (p. 119)
“Torto Arado” torna-se tão atual porque dá voz a milhares de pessoas que foram silenciadas assim como Belonísia, tendo o fio de corte como a representação da cultura dos colonos ainda em predominante cenário, perpetuando um racismo estrutural que vai além dos limites da aceitação. A faca de cabo de marfim torna-se um objeto que atravessa toda a narrativa das três partes de forma simbólica, como uma representação dos cortes que ceifam vidas, discursos, direitos e manifestações. Assim como o torto arado, palavra de esforço na tentativa de Belonísia em sua reprodução, deixando de lado seus estudos e sua liberdade para cuidar dos seus, da sua terra, numa representação do sacrifício do feminino.
Sendo assim, entende-se a importância do destaque na literatura de Itamar Vieira Jr., uma vez que dá destaque a debates e voz ao silenciamento histórico. É a literatura preta, cabocla, mestiça, que vem representar a necessidade desse diálogo tão importante que cada vez mais deve ser aplicado em sala de aula, na construção de ideias e pensamentos libertadores de preconceitos e na construção também de indivíduos que, com essa lente proporcionada pela literatura, possa mostrar o quão é importante mudar a sociedade. Uma vez que “o vento não sopra, ele é a própria viração” (p. 99) façamos da literatura o combustível de mudanças.
//PARCERIAS 2024 // L&PM
Com a obra de Terry Eagleton, mergulhamos em um convite irresistível ao universo da literatura, onde cada página se revela um portal para desvendar os mistérios e encantos da ficção. Tanto para estudantes das letras quanto para leitores ávidos, Eagleton propõe uma nova perspectiva, revelando camadas profundas na arte da escrita que transcendem meras palavras.
Explorando obras clássicas como a "Odisseia" até fenômenos contemporâneos como "Harry Potter", o autor desvela como os inícios literários são convites ao subconsciente do leitor, onde personagens multifacetados ganham vida além das páginas. Eagleton analisa diversas formas narrativas, desafiando-nos a interpretar histórias de maneiras novas, percebendo como valores e visões de mundo são entrelaçados e ecoam para além da superfície textual.
A escrita de Eagleton é acessível e envolvente, evitando o academicismo excessivo para proporcionar uma leitura prazerosa e instrutiva. Através de suas palavras, somos conduzidos à mente de grandes mestres da literatura, transformando-nos em críticos sensíveis capazes de explorar além do óbvio, descobrindo mundos que transcenderam as simples páginas.
Como Eagleton sabiamente aponta, o equívoco comum entre os estudantes de literatura é focar no que o texto diz, negligenciando como isso é dito. Este insight provoca uma reflexão profunda sobre a importância da forma na construção do significado literário.
Recebido através da parceria com a L&PM Editores, este livro não apenas encantou, mas também inspirou a busca por mais conhecimento literário. Encorajo todos a adquirirem seu exemplar e contribuírem para a reconstrução da editora após as adversidades enfrentadas no Rio Grande do Sul. Visite o perfil da editora, explore sua vasta coleção de títulos e mergulhe em uma jornada literária enriquecedora.
Um abraço!
Rodolfo Vilar
Bodega Literária.
P.s.: Se você perdeu as edições anteriores, pode usar o atalho abaixo para sua leitura
De autoria de Patrícia Pereira e Rodolfo Vilar, o texto é fruto do trabalho elaborado para a disciplina de “Literatura e Cultura Afro-Brasileira” do curso de Letras da UPE em 2024.
VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2019.